O Saque de Prato (1512), localidade próxima de Forença, Itália, foi um dos maiores massacres da idade média. Relatos variam de 2.000 a 6.000 vítimas. Após penetrar suas muralhas com canhões, os espanhóis passaram 23 horas saqueando, matando e estuprando. Conta-se que não foram poupados nem os que se refugiaram nas igrejas, conforme o relato do próprio Maquiavel:
"Após uma resistẽncia mínima, todos fugiram, e os espanhóis, tendo ocupado a cidade, procederam com o saque e massacre, um espetáculo miserável de calamidade. Mais de 4.000 morreram... Não pouparam nem mesmo virgens enclausuradas em locais sagrados, que se tornaram cenários de estupro e pilhagem."
Níccolò Machiavelli foi um florentino que tornou-se parte da cultura mundial, devido principalmente ao seu livro O Príncipe, extensivamente discutido em diversos materiais. Porém, este filósofo teve uma vida conturbada e muito, muito interessante, com um final humilhante.
Segundo os registros, Maquiavel era um importante diplomata, considerado a pessoa mais influente de Florença, capital da Toscana, em 1512, e havia reunido um exército de 5.000 toscanos, que estariam prontos para sse juntarem aos 2.000 soldados de Prato para deter os espanhóis, que representavam o exército do papa. Florença, tendo se aliado à França, sentia-se segura contra um exército que estava longe de casa, inferior numericamente e mal alimentado, composto por 5.000 espanhóis. Entretanto, até mesmo os invasores se surpreenderam quando encontraram apenas 3.000 florentinos defendendo os muros da localidade de Prato, sendo apenas 1.000 os homens de Maquiavel. Os outros 4.00O comandados de Maquiavel nunca se apresentaram.
O comandante espanhol Raimondo da Cardona apresentou a Piero Soderini, senhor de Florença, a oferta de 100.000 ducats pela salvação da cidade, quantia absurda que foi prontamente rejeitada. Dessa forma, Cardona lançou o primeiro ataque de artilharia contra os muros de Prato, que foi um fracasso. Suas tropas tinham fome, e as muralhas permaneciam de pé, o que levou Cardona a fazer uma segunda oferta de rendição bem mais modesta: 3.000 ducats. Soderini, sentindo-se confiante na vitória, rejeitou a oferta. Cardona então lançou a segunda investida e, após abrir uma pequena fenda nas muralhas, que um exército experiente reconstruiria rapidamente, as tropas locais simplesmente fugiram em desespero, deixando a população desprotegida.
Após o saque, os Florentinos ficaram tão amedrontados com a crueldade dos exércitos papais que entregaram o controle da cidade para os invasores. Quem acompanhava o exército, e assumiu o controle de Florença, foi justamente Giovanni di Medici, Cardeal que havia sido exilado de Florença junto à sua família em 1492. Perceberam a manobra? Giovanni, apoiando as tropas papais contra sua própria cidade, contratou 5.000 mil soldados espanhóis ao preço de 10.000 ducats, e com isso conseguiu retomar o poder que sua família havia perdido 20 anos antes, apoiando uma carnificina contra seus compatriotas. Um ano depois iria se tornar o papa Leão X (muito famoso, por sinal. Em outro momento escreverei um artigo sobre ele). Já Maquiavel, que esperava obter um cargo com os Médici após o evento, foi preso e torturado severamente por um mês, quando enfim foi exilado, começando então a escrever seu famoso O Príncipe.
Então fica o grande mistério: Maquiavel, um personagem tão calculista que associamos o adjetivo “maquiavélico” quando citamos decisões que consideram a razão sem ética, acabou sendo o maior responsável pela derrota que viria a ser sua ruína política. Incompetência? Erro de Cálculos? Interesses maiores? Vamos às teorias:
Soldados covardes
Maquiavel era da teoria que a lealdade de sua tropa era mais importante que seu treinamento militar. Dessa forma, ganhou bastante respeito percorrendo a toscana para recrutar uma milícia que pudesse empregar em caso de necessaidade, deixando dessa forma a marca de um grande patriota, como ficaria evidenciado depois em suas obras literárias.
Porém, a covardia que esses jovens toscanos demonstraram também se tornaria célebre em alguns trechos de suas obras, sobretudo em Arte da Guerra, onde ele fala que nos tempos antigos, onde os invasores exterminavam civilizações e obliteravam seus deuses, os homens cresciam melhor preparados para a guerra. Dessa forma, poderíamos interpretar que Maquiavel foi um grande patriota e pioneiro no militariasmo da renascença, o que iria de acordo com muitos analistas de sua biografia, mas que acabou sendo traído por uma geração que não estava preparada para o exército profissional espanhol, e sucumbiu.
Acreditou que estaria do lado perdedor
Amplamente tido como um psicopata, Maquiavel sabia do poderio da família Médici, que já havia sido exilada em 1433 com Cosimo de Médici, apenas para utilizar todo o poder de seu banco para retornarem triunfantes ao centro da política florentina pouco tempo depois. Dessa forma, vendo a aliança do ouro dos Médici com o poder político do Papa Julio II, Maquiavel pode ter enfraquecido as defesas propositalmente e, vacilando durante o ataque dos espanhóis, teria desencorajado sua tropa e, com isso, condenado milhares de inocentes.
De encontro a essa ideia, vem a obra O Príncipe, geralmente aceita como um pedido de emprego aos Médici. Além disso, ele não cita o Saque de Prato em suas obras, quando se referencia aos grandes saques ocorridos na região, o que leva a muita desconfiança sobre suas motivações. Aparentemente, o plano acabou dando muito errado. Tendo sido responsabilizado pelos Médici pelo fracasso em Prato, Maquiavel foi preso, humilhado publicamente, torturado e exilado de Florença, encerrando assim sua vida política. Caso tenha sido essa sua ideia, a moral dessa história é que o mal não compensa, nem mesmo para Maquiavel.
Tratava-se de um diplomata, não de um militar
Maquiavel, através do seu livro Arte da Guerra, publicado nove anos após a derrota em Prato, ficou conhecido como um dos maiores especialistas em guerrilha da renascença. Evitando a todo custo a contratação de mercenários, que em sua experiência seriam covardes e inconfiáveis, Maquiavel teria encontrado sua ruína política ao liderar um exército que não se apresentou para o combate, e os poucos que o fizeram, fugiram assim que a primeira ameaça espanhola penetrou as muralhas. Suas teorias, dessa forma, estariam muito à frente de sua época, e falharam.
Essa teoria encontraria respaldo em várias ideias das obras de Maquiavel, que se apresenta como um patriota e visionário, e mais voltado para o lado diplomático. Seus maiores feitos foram sempre através da diplomacia, e ele mesmo prega isso em sua filosofia. Em um trecho, ele afirma que Soderini cometeu um grande erro ao não pagar a segunda oferta de 3.000 ducats de Cordona. Nesse cenário, Maquiavel passaria de grande referência militar a um fracasso.
Um ano após imenso insucesso e vexame, tendo sido condenado a viver em exélio, ele escreve seu O Príncipe. Imaginemos toda a carga de frustração e amargura em um homem que, em menos de um ano, foi apagado da vida política de sua amada cidade. Sob esse ponto de vista, o livro deixa de ser a visão de um psicopata, mas um desabafo de toda a frustação que Maquiavel experienciou.
Conclusão
Seria Maquiavel maligno, incompetente ou simplesmente alguém abandonado por seu exército? Discussões sobre sua filosofia são abundantes, mas poucos parecem se importar com o principal evento em sua vida. Teria sido por que o Saque de Prato foi ignorado por ele em seus livros? Como iremos entender sas ideias, se não entendermos o homem?
Espero que essas linhas tenham fornecido argumentos para que você tire suas concusões, ou ao menos se interesse a aprofunda-se no assunto. Na minha opinião, interpreto que Maquiavel nunca foi um bom comandante, e nem o hábil estrategista que é considerado. Era um diplomata, um aristocrata bastante estudioso, muito voltado para a teoria. Suas obras, fruto justamente do fracasso que suas ações trouxeram, acabariam lhe transformando em uma referência de estrategista após sua morte, mas levou os últimos anos como um pária. O maior exemplo disso foi ter minimizado a importância do treinamento dos mercenários, preferindo a lealdade dos soldados amadores locais, enquanto que no seu Arte da Guerra, dois dos seus 27 princípios ressaltam a importância do treinamento no sucesso das tropas. Maquiavel, ao contrário de um psicopata maligno, é a evidência de que somos um fruto das nossas experiências e escolhas.