Uma história curta de suspense, que se passa na Florença medieval. Um monge com um passado sombrio é atraído para uma jornada entre poderosas forças ocultas, dilemas pessoais e amores impossíveis.
…
Então a escória das galés espanholas,
Inchada de pilhagem, manchada de sangue,
Vazava de seus becos e ruas
Como um furioso rio corrente.
Arrastando com ela mulheres e meninas
Estúpidas de desespero e desgraça,
Onde maligno presságio essas terras
Condenou ao saque, fogo e matança.
…
A Balada do saque de prato, Eugene Lee-Hamilton, 1882.
Os personagens, localidades, eventos e obras citadas na história são reais. Porém, esta é uma obra de ficção, portanto os acontecimentos narrados são fictícios. Afinal, magia, anjos e demônios não existem hoje, nem nunca existiram... certo?
Após uma breve cavalgada, Vincenzo e o bispo chegaram ao destino. A cena do crime era um estábulo, há pouco mais de cem metros à esquerda do portão noroeste. No centro, pendia o corpo de Girolamo de Terzzi, amarrado pelos pulsos ao teto. O feno abaixo dele estava encharcado de sangue, e o ambiente exalava o odor do enxofre. Diego aproximou-se calmamente do cadáver.
- Moço ainda, não mais que vinte anos. Repare nisso aqui, Vincenzo. Foi flagelado - apontou. As marcas eram profundas, como se o chicote tivesse um fio único de metal.
A visão perturbou Vincenzo. Ele sentiu vertigens, e precisou lutar internamente para afastar os relances de seu passado. A cada marca de chicote, ele via uma de suas vítimas invadindo seus pensamentos, com expressões agonizantes. Então, desviou sua atenção para a as baias. Palavras e símbolos com giz adornavam a madeira. Em uma parte do chão, o feno fora afastado expondo um círculo marcado na argila, com símbolos estranhos.
- Olhe aqui, Vincenzo - Deza chamou, em um canto. Ruffiani. Cafetão. Repare que essa caligrafia é diferente de todas as outras. O traçado é mais forte, como se fora escrito com raiva. Essa palavra tem um significado.
Vincenzo impressionou-se com o detalhismo do inquisidor. Sem dúvida uma mente aguçada, o que apenas colaborava para o desconforto que sentia em sua companhia.
Após rápida conversa com os guardas que mantinham o populacho afastado da porta, Deza descobriu a direção do palazzo dos Terzzi, apenas dez minutos dali. Dirigiram-se às pressas, pois o anoitecer se aproximava. Era um palacete luxuoso, mas sem as grandes obras artísticas que eram características das famílias mais abastadas de Florença.
A conversa com os pais do garoto foi muito dura. Mostravam uma dor profunda pela forma como Girolamo foi morto. Entretanto, Deza parecia uma estátua de mármore, alheio ao sofrimento, emendando perguntas sobre as mulheres que o rapaz relacionou-se. Finalmente a mãe, afogada em lágrimas, retirou-se, e então o pai revelou o que o bispo precisava.
- Ele teve um caso com a filha de um pedreiro, há três anos. Uma aventura de rapaz, afinal somos toscanos, padre. O problema começou quando a miserável resolveu engravidar. Ele ficou desesperado, mas acabamos resolvendo para ele. Entregamos a criança para um convento, junto a uma boa doação, e demos um dinheiro para ela manter o bico fechado.
- Você sabe que fim levou a moça? - perguntou Deza.
- Ah, aquela não valia nada! Só queria dinheiro! Quando tudo acabou, foi vender seu corpo. Una puttana!
Deza e Vincenzo olharam-se. Era o suficiente. Após se retirarem, o bispo perguntou:
- E então, Vincenzo. Qual sua conclusão?
- Difícil dizer, senhor. Parece que a motivação foi moral, mas que moral tem alguém que comete tal crime?
- Ah, a insegurança dos jovens. Temos todos os elementos, meu caro monge. Agora vamos descansar. Temos um assassino para prender amanhã.
Finalmente, Vincenzo iria descansar. Haviam chegado à Igreja de São Próculo no centro de Florença, onde foram apresentados ao padre Cosimo e meia dúzia de coroinhas. Após a ceia e as orações, retiraram-se para o quarto. Deza já havia guardado seus pertences, e preparava-se para deitar, quando perguntou:
- O milagre da Madonna de Papalini, aconteceu mesmo?
Vincenzo retornou apenas um olhar desconfiado. Essa pergunta sempre o deixava desconfortável, e o tom do inquisidor flertava com o desdém.
- O senhor ao menos acredita em milagres, padre?
Deza abriu os olhos, como se houvessem lhe despertado com água. Em seguida, assumiu uma expressão de severidade. Vincenzo, por sua vez, arrependeu-se rapidamente de seu rompante de coragem. Na companhia de um inquisidor, deveria ser mais cauteloso. Subitamente, a tensão entre os dois foi rompida por uma sombra projetada de relance pela janela. Segundos depois, ouviram um barulho no telhado. Vincenzo pôs-se de pé em um sobressalto, levando instintivamente a mão até onde deveria estar o cabo da espada.
- Vincenzo, não é necessário. Estamos na casa do senhor. O demônio sabe que somos invencíveis aqui dentro, e cria armadilhas para nos atrair para fora.
Provavelmente ele tivesse razão, pensava Vincenzo. Porém, se havia mesmo uma besta lá fora, ele sabia que, cedo ou tarde, deveria ser enfrentada. E, para ele, nada ficava para depois. Com passos largos, alcançou a rua através da porta da cozinha, mas a única presença era o vento gelado que sentia no rosto. Lentamente, moveu-se como um felino avança sobre sua presa. O luar que se esgueirava entre o telhado dos sobrados da estreita rua era filtrado pela neblina. Logo chegou a uma viela que abria-se entre dois sobrados, e sentiu uma presença maligna emanando de lá. Por fim, o medo começou a abrir caminho em seu peito, como se um lado do corpo o puxasse de volta para a igreja.
Então, ouviu outro barulho. Sobre o telhado, logo acima da viela, um vulto esguio coberto por um manto o observava, agachado. Ao ser percebido, fugiu até sumir do campo de vista. Vincenzo olhou a viela, tão estreita que não era possível ver luz no seu final.
O medo finalmente venceu e, então, ele retornou à igreja. Deza ouviu sua descrição do evento com pouco interesse.
- Parece a mim que você não faz ideia do que está enfrentando, monge.
- Não posso sentir-me culpado por isso. Estamos aqui há poucas horas.
- Ah, mas lutamos essa guerra há milênios! Mas agora, estamos em tempos finais, Vincenzo! O apocalipse se aproxima, e o diabo já conta com um exército poderoso!
- E quem seriam? Com quem estamos lutando, afinal?
O bispo fez menção de responder, mas acabou calando-se. Pegou da cabeceira o livro que havia carregado a viagem toda. Todo padre carrega sempre sua inseparável bíblia. Deza deveria ter a sua, guardada em algum bolso, mas simplesmente não se separava do livro maior, cujo título Vincenzo havia conseguido ler de relance. Malleus Maleficarum.
Vincenzo vagava pelas ruas de Prato, com sua enorme espada coberta de sangue. Porém, como um embriagado que ainda não bebeu o suficiente, ele buscava mais vítimas. Os espanhóis já estavam no segundo dia de saque, mas ele ainda sentia a cólera contra aqueles teimosos toscanos.
“Trinta mil ducats! Ele não quiseram pagar trinta mil ducats para sua salvação, e agora vão todos morrer”.
Ele olhou para os outros dois capitães que o acompanhavam, Giovanni e Spinoso. Restava apenas a igreja de San Vincenzo, trancada. Arrebentar os portões de uma igreja e matar freiras não era nada nobre, mas ele era um capitão. Tinha que estar sempre à frente. Precisa inspirar respeito em seus homens.
Invadiu o santuário, onde estavam dezenas de refugiados, a maioria mulheres e crianças. Porém, ao percorrer a nave, o ar ao seu redor começou a oscilar, como se ondas emanassem de um ponto à sua frente. Era a Madonna de Papalini, estátua que estava sobre o altar, avançando em sua direção. Suas formas foram se tornando cada vez mais sólidas, até que ele percebeu. Na verdade, era a Virgem Maria, estendendo seus braço esquerdo para ele, com uma taça. Vincenzo pensou estar ficando louco, até que olhou para os lados, e viu Giovanni e Spinoso chorando, de joelhos, e os refugiados orando. Estavam todos vendo a mesma coisa.
Vincenzo, então, despertou. Sua mandíbula doía, acusando a tensão com que cerrara os dentes. A testa estava banhada em suor, mesmo com o intenso frio que tomava o quarto. Decidiu ir na cozinha, lavar o rosto.
Enquanto percorria o interior da igreja, o silêncio sepulcral foi quebrado por um tilintar vindo do banheiro. Instintivamente, correu até a origem do som, onde encontrou um homem muito magro, vestindo um manto negro e desenhando algo na parede. No centro da sala, havia apenas uma vela. Vincenzo atravessou a porta, iluminando o banheiro com seu lampião, e viu que havia um corpo com a cabeça submersa na latrina. O odor de fezes era forte, e estava misturado com o mesmo enxofre que ele havia cheirado no estábulo. Alertado pelo lampião, o homem virou-se, mostrando uma tez pálida e a cabeça glabra. Ao ver o monge, sacou um punhal da cintura.
Vincenzo ergueu o lampião, seguro de que seu tamanho iria intimidar o homem, o que permitiria encurralá-lo e obter respostas. Porém, com um grito estridente, a estranha figura investiu com sua arma. Vincenzo despedaçou o lampião em seu crânio, e o homem caiu tão rapidamente que provavelmente já não tinha vida ao tocar o chão. Agora iluminado apenas pela fraca luz da vela, Vincenzo foi até a latrina e puxou o homem mergulhado nas fezes, mas este também já não tinha mais vida. Era o padre Cosimo.
Com o coração pulsando como o galope de um cavalo de batalha, Vincenzo examinou a latrina, e viu que haviam pedaços de vidro. Subiu em sua base de concreto, e com um salto conseguiu pendurar-se na janela, que havia sido quebrada. Ergueu seu corpo até que a cabeça alcançou o nível da janela, e então conseguiu ver um vulto andando ao longe na rua, de manto negro. A movimentação era muito parecida com a figura que ele havia visto em cima do telhado, antes de dormir. Utilizando toda sua força, elevou-se até o peito atravessar a janela, e então atirou-se para a rua.
A noite estava gelada, e a neblina havia adensado. Vincenzo corria, esforçando-se para manter o encapuzado em seu campo de vista. Seus passos eram pesados e sua respiração, profunda. Não demorou para ser percebido por seu perseguido, que pôs-se em disparada. A perseguição estendeu-se por duas quadras, até que chegaram em uma praça e, finalmente, a linha de visão com seu alvo foi bloqueada pela densa névoa. Olhou ao redor, e a praça era cercada por imensos casarões, o que o deu a real perspectiva de sua situação. Estava só, sem saber contra quem lutava, e havia decidido não trazer sua espada.
Ouviu então um rangido. A porta de uma mansão havia sido deixada aberta. Ele lutava internamente. Fugir uma segunda vez seria intolerável.
Vincenzo ajoelhou-se e orou com fervor. Pedia a Deus sua coragem, para fazer justiça pela alma do pobre padre Cosimo. Sentiu então um calor enorme subindo da base de sua coluna até a cabeça. Era um sinal. Com passos confiantes, entrou na mansão pela porta entreaberta.
A neblina impedia o luar de alcançar as janelas, e o salão de entrada não tinha fontes de luz acesas. Vincenzo só sabia que ainda estava neste mundo pela sensação do vento gelado cortando sua nuca. Fechou os olhos, e concentrou toda sua atenção na audição. Conseguiu perceber uma respiração, no lado oeste do salão. Caminhou devagar, cuidando para tatear qualquer obstáculo que pudesse revelar sua posição, mas questionava-se se a visão de demônios realmente seria afetada pelo escuro. Um estrondo quase o derrubou. A porta havia batido atrás de si. Um calafrio percorreu seus braços, mas ele não poderia parar. Não iria sentir medo. Sentia que tinha Deus ao seu lado, portanto não precisaria de uma espada.
Estava chegando perto. A respiração de seu perseguido se mantinha na mesma parede. Iria agarrá-lo, e fazê-lo pagar por seus crimes. Sabia que estava se aproximando, e agora sua busca era facilitada por um súbito luar, que começava a penetrar pelas janelas. A neblina se dissipava, permitindo a luz entrar na sala praticamente junto com o avanço de Vincenzo, como se a lua agora iluminasse cada passo seu. Ele se preparou-se para prender o assassino. Avançou, com as duas mãos, e agarrou seus ombros, sentindo o hálito podre do inimigo de perto, e então a luz revelou seu corpo. Era um cavaleiro, ostentando um escudo e apoiando sua espada no chão. Era um adversário imponente, de aspecto terrível, todo feito de mármore.
Ao receber o toque, a estátua virou sua cabeça vagarosamente para o monge, que deu alguns passos e caiu sobre uma pequena mesa de vidro, que se desfez em pedaços. A partir daí, suas ações foram guiadas somente pelo desespero. Saiu da mansão, e correu para a igreja sem olhar para trás. Toda a sua coragem de guerreiro abandonou-o naquele momento. Havia enfrentado milhares de homens, e nunca havia temido. Vencera algumas batalhas, perdera outras, mas sempre soube contra quem estava lutando. Agora, sentia como se a luta fosse apenas contra um mal sem forma física. Apenas a pura maldade.
Ao retornar à igreja, encontrou Deza e os seis coroinhas examinando o banheiro.
- Ah Vincenzo! Muito bem! Olhei esse adorador do diabo no chão, e deduzi que você tinha ido buscar seu comparsa!
O monge, sempre impressionado com a perspicácia do inquisidor, ordenou que os coroinhas se retirassem, pois sentia-se embaraçado para contar o ocorrido. Eles olharam para Deza, que os expulsou sem cerimônias. Após ouvir o relato ofegante e detalhado, Deza tomou um minuto para refletir. Então, indicou a parede.
- Olhe aqui, Vincenzo. Consegue identificar novamente aquela caligrafia diferente? Adulatori.
- Adulador - Vincenzo repetiu. E outro círculo desenhado no chão, dessa vez um símbolo diferente.
- E a última pista está em nossa mão. Com a graça do Senhor, Vincenzo, amanhã fazemos uma prisão.
- Pode contar com ela, bispo.
Vincenzo continuava respondendo como um soldado, mas travava a batalha de um monge. Queria voltar atrás. Questionar contra o que estavam lutando, e o que havia de tão poderoso no livro de Deza que o dava tanta segurança, contra forças tão maléficas. Ao invés disso, chamou os coroinhas novamente, que seguiram a limpar o corpo do falecido padre Cosimo.
Após o desjejum, Deza pediu a Vincenzo que o acompanhasse até a mansão da noite anterior. Caminharam até a praça, que agora sob a luz do dia parecia somente um aglomerado de casarões velhos. Bateram à porta, e foram atendidos por uma simpática criada. Ela beijou a mão do bispo, e fez uma reverência para o monge.
- Bem vindos senhores. O que desejam no Palazzo Albizzi?
- Gostaríamos de uma conversa com seu senhor - disse Deza.
Ela assentiu, e convidou os dois a adentrarem no enorme salão, agora belíssimo na claridade. As paredes eram ornadas por afrescos enormes, com duas esculturas em cada parede. Vincenzo, porém, não conseguia tirar os olhos do cavaleiro da noite anterior, que mantinha sua fixa posição na parede oeste. O monge questionava se não teria sido traído pela escuridão e o som do vento. Seria uma explicação mais racional, afinal aquele cavaleiro de mármore não aparentava diferença alguma com as demais estátuas do palazzo.
Após alguns minutos de espera em aconchegantes sofás, subiram ao escritório, onde foram apresentados ao cabeça da família, Anton Francesco de Albizzi. Era um homem de aproximadamente trinta anos, de cabelo curto, nariz pontudo e olhar astuto.
- Olá meus senhores. Que bons ventos os trazem a na moradia deste humilde servo do Senhor?
- Estamos aqui a pedido do Cardeal, Giulio de Médici, investigando dois assassinatos. Tenho certeza que o senhor já tomou conhecimento - falou Deza.
- Com certeza! Nada acontece em minha cidade que não seja do meu conhecimento. E como terei o prazer de ajudá-los?
- De uma forma muito simples, nobre senhor. Preciso inspecionar sua mansão, todos os aposentos, e absolutamente todos seus funcionários.
Deza falava com a naturalidade de quem anunciasse o horário da missa de domingo. Porém, a expressão de Anton foi de absoluto ultraje. Ele respondeu em tom alto e com muita gesticulação, característica dos toscanos que Vincenzo começava a se acostumar:
- Mas o que é isso? E a que devo tamanha desconfiança, sob meu próprio teto? Que ousadia! Terei uma conversa bem séria com Giulio de Médici agora mesmo!
- Você sabe, senhor, quem eu sou?
- Sim. Diego Deza, o sucessor de Torquemada como Grande Inquisidor! Muito é falado sobre você daqueles que vêm da Espanha. E o monge é Vincenzo, o capitão do Milagre da Madonna de Papalini.
- Então sabe que não sou o inimigo que você gostaria de ter.
Anton cerrou a mandíbula, e sua expressão contraída denunciava profunda raiva. Vincenzo, por sua vez, não compreendia como a conversa havia escalado tão rápido.
- Isso nós veremos. Homens! - Ordenou, e os três guardas que esperavam na porta se aproximaram.
Deza apontou o indicador da mão direita para os homens, enquanto segurava firme seu Malleus Maleficarum com a esquerda, e ordenou:
- Quando alguém obstrui diretamente a sentença ou o processo em benefício da Fé, ou presta auxílio, ou aconselha ou dá proteção para aquele propósito, pois tal pessoa é atingida pela espada da excomunhão!
Os guardas pararam, como se tivessem sido constringidos por enormes serpentes. Vincenzo não conseguia fazer sentido daquela cena mas, então, observando atentamente o olhar dos guardas, reparou um temor profundo pelas palavras aparentemente sem contexto do inquisidor.
- Vincenzo, pegue a espada deste homem! - ordenou Deza, ao que prontamente Vincenzo obedeceu. Senhor Anton, pelos poderes a que a igreja me confere, irei vasculhar sua casa. Você pode escolher entre aceitar isso, ou tentar me impedir.
Dizendo isso, o inquisidor colocou a mão no ombro do monge, e partiram para vasculhar a mansão. Ao invés de destacar um serviçal, o senhor Albizzi acompanhou pessoalmente a busca. O palazzo era enorme, e cada aposento revelava-se tão irrelevante quanto o anterior. Deza, porém, não parecia incomodar-se com a monotonia da missão. Vincenzo se questionava que tipo de poderes o bispo teria, para se comportar como se tivesse sempre à frente dos acontecimentos, com aquela segurança inabalável.
Após três horas de busca chegaram à adega, no porão. Anton parecia especialmente nervoso. Logo ao entrarem, encontraram uma mulher posicionando delicadamente uma garrafa em uma das prateleiras. Ao sentir a aproximação dos visitantes, ela aproximou-se e veio cumprimentá-los, mantendo a cabeça baixa. Era uma mulher bela, de cabelos lisos e presos em uma longa trança, com olhos verdes e um corpo elegante, com seios fartos.
- Boa tarde, senhores. Sou Maria, de Santo Domingo.
Vincenzo não acreditava no que estava vendo. Seu coração disparou, as mãos suaram e seus joelhos amoleceram. Ali, em sua frente, estava o amor de sua adolescência. Haviam sido criados juntos em Piedrahíta. Ele fazia coisas absurdas para conquistá-la, mas a única coisa que conseguiu foi sua amizade. Desde nova, Maria não tinha interesse em relacionamentos mundanos. Seu amor era todo para Deus. Logo, mudou-se para Ávila, onde fez seus votos de castidade e virou beata, deixando Vincenzo com o coração partido. Foi o fato decisivo para ele virar um cavaleiro.
Agora, ela estava ali, em sua frente, após uma década. Iriam se reencontrar, afinal. Porém, ao levantar a cabeça para cumprimentá-los, o olhar dela fixou- se em Deza, e sua expressão horrorizada quase deformou suas feições quase angelicais. Maria empalideceu, e Vincenzo acreditou que ela estava prestes a desmaiar.
- Muito obrigado, senhor Anton. Já encontramos o que procurávamos. Passar bem - disse Deza, e retirou-se.
- O que acabou de acontecer?!
- Ah, caro Vincenzo. Vejo que ainda tenho muito a lhe ensinar. Um homem influenciado pelo demônio comporta-se, em muito, como um animal. Se o acuarmos, ele irá atacar. Não quis testar muito mais nossa sorte, até porque o que vi é o suficiente.
- Suficiente para que? Se importa em compartilhar?
- Para o cumprimento de nossa missão. Encontramos não somente os assassinos, mas a cabeça do crime.
Vincenzo não conseguia perceber a relação entre Maria e os dois assassinatos, e cada pergunta recebia apenas uma resposta enigmática de Deza. Ficou insistindo, até que percebeu o caminho que tomavam. A Catedral de Santa Maria del Fiore, conhecida como o Duomo de Florença.
- Os florentinos levaram cento e vinte anos para finalizar esta espetacular homenagem ao Senhor, Vincenzo. Certamente você poderá esperar a refeição para ter suas respostas.
As preocupações do monge subitamente minguaram frente àquele milagre da arquitetura. Um colosso de mármore ornamentado por lindas esculturas, a catedral tornava-se realmente espetacular em seu interior, quando então seu teto parecia ainda mais alto. O domo era dignificado com afrescos lindíssimos, enquanto a luz solar penetrava através de coloridos vitrais. Vincenzo sentia-se como se estivesse na própria casa de Deus.
Deza entrou de forma majestosa, dirigindo-se à sacristia, onde encontrou o Cardeal, Giulio de Médici. Vincenzo o conhecia bem. Giulio e seu irmão de criação, Giovanni, haviam pago o exército espanhol para o assalto a Prato. Com a brutalidade do Saque de Prato, os florentinos ficaram tão amedrontados que acabaram recebendo os dois Médici de volta, após vinte anos de exílio. Hoje, quatro anos depois, Giulio era Cardeal, e Giovanni era o Papa Leão X.
- Bispo de Deza! Meu amigo Diego! Não esperava sua chegada tão cedo! E com você, trouxe o espanhol do Milagre da Madonna de Papalini!
- Mesmo após esses anos, um inquisidor não perde seu faro, senhor. Encontrei a culpada, com ajuda do nosso monge aqui.
- Ah! Mas que bela notícia me trazes! E já a capturou?
- Para isso, Vincenzo precisará reforços, sua graça. A criminosa é guardada com grande apreço pelo senhor Albizzi.
- Sim, a beata…- o Cardeal não parecia surpreso. Pois bem, fiquem à vontade. Serviremos boa comida a vocês, e juntarei uma guarnição para a captura. Você acredita que ela… você sabe…
- Sim, sua graça. E temos de agir muito rápido, pois ela ainda fará oito vítimas caso siga à solta.
Sentaram à mesa junto ao Cardeal, e foram servidos com um belo banquete. Enquanto os dois conhecidos conversavam, Vincenzo sentia uma inquietação insuportável. Afinal, o que ele estaria prestes a fazer? Prender Maria? Com qual prova? Sua fé era testada a cada mastigação. Teria ele trocado uma vida de soldado por outra? Obedecer sem questionar? E ainda assim, ali estava ele, com uma refeição de rei, e a cabeça baixa, enquanto os comandantes deliberavam.
- Peço perdão, senhores, mas se brandirei minha espada para prender essa mulher, preciso saber o porquê - ele interrompeu.
Os anciãos o olharam com espanto e desaprovação. Deza cerrou os dentes, e começou a blasfemar em espanhol, mas Giulio o interrompeu com um sorriso.
- Calme, meu amigo Diego. Nosso companheiro carrega a empáfia da mocidade. Vamos, lhe ensine por favor, os caminhos do demônio.
Mesmo contrariado, o inquisidor buscou sua bolsa, e dela retirou o inseparável livro, Malleus Maleficarum.
- Vincenzo, essa é a relíquia mais sagrada de toda a inquisição. Esse é o Martelo das Bruxas original, escrito pelo pŕoprio Heinrich Kraemer. Não é apenas um livro, mas o martelo com o qual denotaremos o diabo no juízo final, que por sinal se aproxima.
- Podemos pular o nome do autor nessa casa de Deus, já que foi excomungado, caro Diego - lembrou Giulio.
- Sim, peço perdão. Mas continuando, esse é o livro que reúne toda a sabedoria sobre o demônio, seus poderes e a forma como age sobre os humanos.
- E onde ele menciona Maria? Ainda não entendi - respondeu Vincenzo.
- Ele menciona todas as mulheres, meu caro. Ouça com atenção estas palavras:
“É um fato que maior número de praticantes de bruxaria é encontrado no sexo feminino … possuidoras de língua traiçoeira, não se abstém de contar às suas amigas tudo o que aprendem das artes do mal. E por serem fracas, encontram modo fácil e secreto de se justificarem na bruxaria… criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente… Femina, vem de Fe e Minus, por ser a mulher sempre mais fraca em manter e em preservar a sua fé”.
Deza fechou o grande livro, olhando orgulhoso para o monge, como se esperase aplausos. Vincenzo, a princípio, ficou confuso. Não conseguia relacionar nada daquilo com Maria. Ele a conhecia, era uma santa desde criança. Porém, gradativamente, as palavras do inquisidor se repetiam em sua cabeça, como ecos, porém com a intensidade aumentando a cada ciclo. Ele recordou de quando passou dois dias caçando uma loba que atormentava as ovelhas de Piedrahíta. Após finalmente retornar com a cabeça do animal, pagou para um joalheiro fazer um cordão de contas com os dentes, e então presenteou Maria. Ela sorriu, e lhe deu um beijo na testa:
- Ah, Vicente! É um lindo colar, mas não sou alguém cuja vaidade possa ser engrandecida por lindos presentes. Eu amo você como amaria um irmão, se tivesse.
Tudo começava a ficar mais claro. Somente a bruxaria poderia tê-lo feito empreender tanta força por uma mulher que, lembrando agora, nem era tão bela. Passou a recordar todas as vezes em que ela o esnobou, todas as dificuldades que passou na vida pelo amor que nunca foi correspondido, e finalmente entendeu. Maria era culpada por isso. Era uma bruxa.
As palavras do inquisidor seguiam ecoando na cabeça de Vincenzo, até um momento em que ele já não sabia diferenciá-las das suas próprias ideias. Após finalizar a refeição, pediu licença e foi até o altar, orar. Porém, não obteve a paz costumeira. Seu sangue estava tão quente que sentia vontade de tirar os agasalhos, e ainda faltava uma semana para o fim do inverno. Pouco tempo depois, Deza o convidou para retornarem à igreja, e então despediram-se do Cardeal. Ambos retornaram em silêncio, fizeram sua higiene e dirigiram-se ao quarto, para dormir.
Vincenzo, porém, estava inquieto. Precisava tomar uma decisão. Precisava saber se Maria era realmente uma bruxa, pois sentia uma necessidade visceral de fazê-la pagar por tudo que causou em sua vida. Por outro lado, poderia simplesmente voltar para no monastério, e deixar seus problemas para trás. Ou então simplesmente dormir, e deixar Deus tomar conta do assunto. Mas algo em seu interior queimava. Sem sono, decidiu aproveitar que o inquisidor havia dormido, e pegou seu precioso livro na cabeceira.
Era um tomo denso, com diversas citações e teorias. Logo em seu início, uma sentença o horrorizou:
“E assim, os acusados devem ser torturados para que confessem o seu crime. Qualquer pessoa...sob acusação dessa natureza, pode ser submetida à tortura, e a que for considerada culpada, mesmo tendo confessado o seu crime… há de sofrer todas a outras torturas prescritas pela lei…”
Como um relâmpago, saiu da igreja em direção ao Palazzo Albizzi.
Vincenzo retornou à mesma praça da noite anterior. Dessa vez, porém, não sentia medo, mas sim inquietação. Ele precisava saber a verdade. Quatro anos atrás, quando viu a própria Virgem Maria, prometeu nunca mais maltratar uma mulher. Arrependeu-se de todos os seus pecados, e mudou-se para o monastério em Prato, jurando que não derramaria mais sangue inocente. Agora, questionava-se se Deus havia decidido que ele ainda precisava lutar mais uma batalha, mas dessa vez ele estava lúcido. Iria tomar uma decisão justa.
Dirigiu-se a uma hospedaria em frente ao palazzo, alugou um quarto no segundo andar, e então posicionou uma cadeira à beira da janela, pondo-se a observar e a imaginar alguma forma de descobrir a verdade.
Ele esperou, até que seus olhos começaram a pesar. Já era tarde, e o sono o chamava.
- Olá, Vicente.
O susto derrubou Vincenzo da cadeira. Olhou em direção à porta, e ali estava ela. Maria. Uma década depois, sua Maria, aquela que tinha a voz mais suave do mundo, chamando ele pelo seu nome verdadeiro. Seu nome espanhol.
- Vicente, meu amigo. Sempre senti sua falta. Me salve. Eles estão vindo. Você sabe o que farão comigo - eram palavras de temor, porém pronunciadas com a suavidade dos anjos.
- Maria… eu… não sei...
Sua atenção foi interrompida por batidas na rua. Vincenzo voltou-se à janela, e viu Deza dando fortes pancadas na porta do Palazzo Albizzi, chamando por seu senhor. Virou-se para falar com Maria, mas ela não estava mais lá. Ele não sabia o que fazer. Aquela conversa só acrescentava poder às falas de Deza. Ela poderia estar utilizando seu amor para enfeitiçá-lo. Ele seria executado junto com ela, se tomasse alguma decisão estúpida. Ademais, a demonstração do poder de ilusão de Maria havia sido clara. Ele tinha certeza que a porta nunca fora aberta ou fechada.
Então, percebeu que em um dos aposentos do palazzo, uma vela fora acesa, e pela janela, viu a silhueta de Maria, virada em sua direção.
- Senhor Albizzi, trago comigo uma dúzia de homens do Cardeal! Tenho certeza que podemos resolver isso da melhor forma! - berrava Deza enquanto esmurrava a porta.
Vincenzo respirou mais fundo, buscando arrefecer a emoção que sentia no momento. Queria analisar racionalmente a cena, e fazer a sua escolha. Vida ou morte, certo ou errado, tudo dependeria de sua próxima ação. Tentou com todas as forças, toda a sua fé, até que desistiu. Seu peito quase explodia de vontade de ir até Maria. Precisava entendê-la. Falar com ela. Encontrar suas próprias respostas. A leitura do inquisidor ainda ecoava em sua memória, mas algo em seu interior crescia. Era como uma luz em expansão, que indicava a ele que a verdade só poderia vir de dentro.
Juntou os lençóis, arrancou o lustre do teto, e improvisou uma corda com gancho. O vão entre os dois prédios era estreito e, com toda confiança, atirou sua nova ferramenta contra a calha, logo acima da janela de Maria. Em poucos segundos, estava no quarto dela. Ao mirá-la de perto, não sabia o que dizer.
- Você veio - ela falou com um enorme sorriso.
- Quem é você? - ele limitou-se a perguntar.
Uma pesada chuva desabou sobre o telhado, acompanhada por um trovão.
- Quem eu sempre fui, Vicente. E, agora, sei que posso contar com você, meu amor.
- Maria… preciso de respostas…
- Você já tem todas elas - ela tocou a palma da mão esquerda em seu peito. Só precisa saber onde procurar. Agora se proteja, e deixe que Deus cuide do resto.
Ela virou as costas, e foi em direção à escada, de onde emanavam os gritos de Deza invocando-a. Surpreso, Vicente retornou à janela, onde pendurou-se na corda que ainda pendia da calha, e escalou até o telhado. A chuva era torrencial, e as telhas estavam escorregadias. Relâmpagos cortavam o céu ao redor da cidade. No cume do telhado, estava aquela mesma figura encapuzada dos dias anteriores.
Enquanto protegia os olhos da chuva com a mão esquerda, Vincenzo esgueirou-se pela inclinação da cobertura. O homem ergueu-se, parecendo pronunciar algumas palavras, que foram abafadas por mais um trovão. Então, Vincenzo sentiu uma batida seca contra o peito, como o soco de uma mão invisível, e perdeu seu equilíbrio. Escorregou até a borda do telhado, e sentiu o corpo cair.
Vincenzo acordou. Estava em um hospital. Inclinou-se na cama, e sentiu uma pontada de dor na nuca. À sua frente, Deza lia seu precioso livro.
- Que houve?
- Eu que devo perguntar isso, jovem. Onde você esteve ontem à noite, enquanto eu travava uma batalha contra o diabo?
- N… não lembro… fui atacado, e não lembro…
Deza abriu um sorriso de escárnio, e então levantou Vincenzo.
- Venha, tenho uma missão importante para você. Temos uma terceira vítima, mesmo com Maria presa. Precisamos desmantelar essa seita, e para isso temos que fazer a cadela de Santo Domingo latir.
- Você a torturou?
- Ah Vincenzo… não chamaria de tortura, mas de obra do Senhor. Mas não se preocupe que você não perdeu muito. O melhor ainda virá. O sagrado processo inquisitório é gradativo. Está tudo escrito aqui - e bateu em seu livro.
Ao sair do hospital, Vincenzo percebeu que já passara do meio-dia. Não fazia ideia de como estava vivo ou como fora parar no hospital. Lembrou da sua queda. O palazzo deveria ter em torno de 25 metros de altura, e ele caíra de costas, e tudo que sentia era uma dor na nuca e o corpo fatigado.
Caminharam até a prisão, e encontraram Maria no canto de uma pequena cela. Percebeu um guarda protestando junto ao inquisidor, mas foi rapidamente afastado. Vincenzo sabia que os toscanos não tinham apreço pelos métodos da inquisição espanhola.
- Ah, Maria! Olha quem eu trouxe! Meu aprendiz! Ele é mais moço que eu. Tem mais vigor que eu para conversar com você.
- Olá, inquisidor. Se você quer mais vigor, por que não chamou os guardas para me torturarem?
- Ah, Maria! Mas chamaria, se fossem espanhóis. Esses toscanos vêem as coisas de um jeito muito romântico, mesmo quando estão falando com alguém que pactua com o diabo!
Deza pegou uma varinha, que estava encostada em um canto da sala, e entregou a Vincenzo.
- Vamos lá, Maria. Trago novidades. Para tirarem a culpa sobre você, seus acólitos fizeram uma terceira vítima. Outro padre, encontrado no cemitério. Estava enterrado de cabeça para baixo, e seus pés foram queimados enquanto ainda vivia. Sabe o que estava escrito? Simoniaci. Simoníaco!
- Sei, sim. Todo florentino sabe, afinal o livro foi escrito há poucos metros daqui. Simonia, a venda de artefatos religiosos, é o terceiro crime daqueles que estão na Malebolge, o oitavo círculo do inferno, destinado aos mentirosos, fraudulentos e sedutores. Os dois primeiros crimes mencionaram rufião e adulador. Enquanto eu falo isso, toda a população florentina que sabe ler já identificou a mensagem do assassino. Ele está usando a Divina Comédia, de Dante.
- Viu o que falei, Vincenzo? Como a língua das mulheres é eloquente! E esse símbolo, bruxa? Esbocei a partir do desenho feito no chão, próximo à vítima.
Diego mostrou o pedaço de papel rabiscado:
Maria apenas balançou a cabeça, negativamente.
- Bruxa traiçoeira! Vamos ver como ela fala, após nosso amigo monge aplicar uns bons golpes nessa carne corrompida! Vincenzo, ela é sua!
- Tudo bem. Só peço que deixe-nos a sós, senhor.
Deza saiu, com expressão triunfante. Vincenzo ajoelhou-se até Maria, e notou as feridas abertas em seus braços e pernas.
- Maria, me ajude, por favor. Eu não sei o que fazer. Ontem, você apareceu naquele quarto como um fantasma. Que mulher normal teria poder para fazer isso? Me fale a verdade. Quero toda a verdade!
- Eu não sou normal, Vicente, assim como você. A menos que você ache que sonhou com a Virgem.
- Não… ela era real, todos a viram.
- Assim como eu a vejo, e vejo ao Nosso Senhor Jesus Cristo. E falo com eles, e essa é a verdade, que homens como Deza não suportam ouvir que uma mulher consiga fazer. E você sabe por que ele reverencia a Virgem? Por que está morta, pois se estivesse viva, ele já a teria condenado à fogueira. Ele leu o Malleus Maleficarum para você?
Vincenzo calou-se. Tudo o que ela falava fazia completo sentido. Ele largou a varinha, e abraçou Maria. Envolveu-a nos braços com imenso amor, como se aquele abraço representasse a década inteira longe dela. O tempo parou, os sons e odores sumiram, e pela primeira vez em quatro anos, sua mente não tinha pensamentos, somente aquele amor que transbordava em seu peito, derramando em cima de sua amada. Então, ele a soltou, e lágrimas rolaram de seus olhos quando ele viu que seus ferimentos haviam sumido.
- Você não é um homem normal, Vicente - ela sorriu.
- O que eu fiz?
- Não sei explicar, meu amor. Quando eu faço isso, chamo de milagre, pois vêm de Deus. Conheço algumas pessoas que chamam de magia branca, pois dizem que vem dos anjos.
- Maria, Deza está voltando. Me dê algo para ajudá-la!
- Meu senhor falou algo ontem, sobre alguém que saberia a verdade, mas eu não entendi. Algo como “certamente o homem que vendeu Prato deve estar envolvido nisso”. Diz algo a você?
- Certamente. Maria, cuide-se. Voltarei em breve.
No lombo de Brunello, Vincenzo chegou a Prato em pouco menos de duas horas. Dirigiu-se diretamente ao monastério e, sem informar sua chegada, finalmente alcançou seu quarto, que estava vazio. De forma decidida, vestiu sua armadura, e equipou sua espada. Caminhou até a pequena capela da Virgem, que ficava no jardim, e pediu perdão, ajoelhado e apoiando-se no chão com sua arma. Sentia-se entre o céu e o inferno. Iria quebrar uma promessa, e sabia das consequências disso para sua alma. Porém, também sabia que um homem precisa lutar pelo que acha certo. Sentia ser possuidor de um dom, e precisava escolher entre pecar por trair um voto, ou pecar pela falta de ação contra a injustiça. Concluiu que, no fim das contas, ele era um guerreiro, e guerreiros devem lutar.
Levantou-se decidido, retornou para Brunello, e partiu em direção a San Casciano, casa do exilado Nicolau Maquiavel. “O homem que vendeu Prato” só poderia ser ele. Vincenzo ainda lembrava sua surpresa quando a hoste espanhola chegou aos muros de Prato e, ao invés do poderoso exército patriota com cinco mil homens de Maquiavel, encontrou apenas mil jovens covardes, somados aos despreparados guerreiros da cidade. Foi necessário apenas abrir uma brecha no muro com os canhões, e seus defensores fugiram como galinhas. Maquiavel nunca foi visto. O restante da história, Vincenzo prefere não lembrar. Enquanto galopava, ficava apenas imaginando o quanto aquele homem havia recebido para perder a batalha. Deveria ter valido a pena, pois o fracasso acabou com sua carreira política.
Após três horas de marcha, chegou em San Casciano. A casa de Maquiavel era inconfundível, bem mais luxuosa que sua vizinhança. Foi recebido por sua esposa, e em alguns minutos, estava na sala do ex-diplomata. Recusou a infusão que a mulher ofereceu, e disse:
- Senhor Maquiavel, venho aqui por um problema urgente. Uma mulher está sendo acusada por três assassinatos, e tenho razões para acreditar que você sabe algo.
Maquiavel o olhou com interesse. Após um minuto de silêncio, falou:
- Um monge aparece em minha casa sozinho, uma mulher está sendo acusada, e eu sei de algo… senhor Vincenzo, sejamos honestos. Você está desesperado, e precisa de ajuda.
A resposta constrangeu o monge, que ficou sem palavras. Por fim, contou toda a história a Maquiavel, que ouviu com interesse. Ao final, ele respondeu:
- É interessante que as pessoas pensem que vendi Florença. Tenho a impressão de que a história um dia irá me desenhar como um grande vilão, ainda mais depois que publicar isso aqui - segurou um livro, cujo título era O Príncipe. Mas pelo que entendi, seu problema não será resolvido ouvindo a história da minha vida. Deixe-me contar o que realmente interessa. Você acredita em magia?
- Perdão, como? Bem… digamos que acredite, o que tem?
- E de onde vem seu poder?
- De Deus, ou dos anjos, não tenho certeza - Vincenzo improvisava, constrangido, lembrando-se das palavras de Maria, tendo a certeza de estar parecendo tolo.
- Bem, então acho que você vai entender. Se um pessoa com fé em Deus e nos anjos consegue fazer magia, uma que tenha fé no diabo não teria o mesmo resultado?
- Continue…
- Pois bem, acontece que uma das formas de magia é a criação de talismãs. Não vou entrar em detalhes com você, mas acredito que seja o objetivo desse ritual. Se alguém conseguir prender dez demônios da Malebolge em um artefato, teria um poder realmente impressionante.
- E quem teria poder e conhecimento para tal heresia?
- Alguém poderoso o suficiente para me fazer fugir de Prato...
- E quem seria?
- ...e cruel o suficiente para me torturar até quase me matar.
Vincenzo sentiu um calor preencher seu corpo, como se o sangue houvesse se transformado em uma torrente de chamas. As coisas começavam a fazer sentido. Toscanos desprezam a inquisição espanhola e seus métodos. Por qual outro motivo Giulio de Médici chamaria Deza, se não pela certeza que ele incriminaria uma mulher? Por qual outro motivo o homem de manto teria se refugiado no palácio dos Albizzi, e deixado a porta aberta? Tudo era uma trama do Cardeal para incriminar alguém, enquanto prosseguia com suas heresias. Isso não surpreendia Vincenzo, afinal foi esse Cardeal e seu irmão, agora Papa, que pagaram seu salário para massacrar os florentinos e retomar o poder da família Médici. Levantou da poltrona com pressa, e saiu em direção ao seu cavalo.
- Vincenzo! Cuidado! Você está lidando com forças poderosas.
- Eles também - e segurou seu crucifixo.
Vincenzo galopava o trajeto de volta à Florença. Os últimos raios do crepúsculo acabavam de abandonar o céu. Sentia o cheiro da lama resultante da chuva no dia anterior, e o vento gelado cortando seu rosto. As palavras de Maquiavel repetiam-se ciclicamente em sua memória.
"Você está lidando com forças poderosas."
Subitamente, Brunello começou um galope vacilante, e então disparou. Vincenzo tentou controlá-lo, pois o animal não aguentaria esse ritmo até Florença, após a longa vinda. O destriero não respondeu, o que era estranho para um companheiro de tantas batalhas. Então, o monge percebeu que o animal estava completamente aterrorizado. Olhou para trás, e viu que estavam sendo seguidos à distância por um cavaleiro carregando uma enorme tocha. O monge queria parar sua montaria, e enfrentar o inimigo, mas não conseguia controlá-lo.
Após alguns minutos de perseguição, Vincenzo virou-se novamente. O cavaleiro havia cortado distância, estando próximo o suficiente para ver que ele não carregava tocha alguma. Eram os cabelos e cascos de seu cavalo negro que estavam em chamas. O cavaleiro vestia uma armadura negra, adornada por uma cruz vermelha invertida, e apenas olhos brancos eram vistos pela viseira do elmo. O galope de sua montaria não produzia som, nem espalhava a lama.
Brunello saiu da estrada, e acabou prendendo a pata em um buraco, desabando. Vincenzo conseguiu rolar sem se ferir, e então ergueu-se, de espada em riste. Porém, não havia mais nada lá. Iluminada pela lua minguante, estava apenas a estrada, e seu cavalo agonizante. Vincenzo ajoelhou-se ao lado do companheiro de uma década, e chorou. Uma pata havia se quebrado. Sentiu seu coração partindo quando precisou sacrificá-lo. Toda a raiva que o possuíra havia sido substituída pelo luto. Guardou sua espada, e seguiu com pesados passos seu trajeto de retorno à Florença.
Já deveria estar na metade do caminho, quando viu ao longe um homem enforcado em uma árvore. Sacou sua espada, pois tinha certeza que o homem não estava ali na vinda. Algo estava muito errado. Como alguém seria enforcado ao anoitecer, e logo na estrada?
Aproximou-se cuidadosamente enquanto a corda rangia no ramo da árvore, no ritmo em que o vento balançava o cadáver. Depois da perda do seu cavalo, não iria se deixar assustar por mais uma ilusão. Então, quando ele já estava próximo, a corda se rompeu, e o corpo caiu. As nuvens cobriram a lua, e Vincenzo conseguia ver apenas um vulto ao chão.
Então, rapidamente, o cadáver levantou-se, e caminhou em sua direção. Tinha a pele azul clara, e diversas cicatrizes costuradas no rosto. Caminhava com as mãos esticadas, com dedos tortos onde estavam expostos os ossos fraturados. Vestia trapos, exalava um cheiro sufocante de enxofre, e pedia:
- Salve-me…
- Vade retro Satana! - gritou Vincenzo, decapitando a criatura com um único golpe.
Seguiu, então, sua viagem a passos largos. Não sabia mais o que sentia. Já havia passado pela raiva, tristeza e medo, no intervalo de poucas horas. Queria chegar logo em São Próculo, e descansar. Queria ver Maria. Decidiu que iria orar pensando nela, para ter coragem no caminho de retorno. Olhava para trás a cada cinco passos. Já conseguia ver Florença cada vez mais perto, e a criatura demoníaca aparentemente havia ficado para trás. Começava a ter esperança. Então, sentiu um toque, tão gelado que penetrou em seu manto e congelou seu ombro. Ele virou-se, e viu novamente o enforcado. No lugar de sua cabeça, estava a imagem fantasmagórica de um homem barbudo, branco como a neve e sem pupilas. Ele pronunciava algo em idioma desconhecido, e Vincenzo sentia como se toda a maldade da humanidade saísse de sua boca.
Sua fisionomia lembrava as pinturas de figuras bíblicas que Vincenzo conhecia, com traços exóticos que não remetiam a raças atuais. As palavras pareciam não ter conexão alguma, porém eram compreensíveis de alguma forma. O demônio estava ordenando Vincenzo a ajoelhar-se, e servir.
O espanhol golpeou com violência o flanco esquerdo da criatura, mas ela não reagiu. Apenas olhou para suas mãos, e delas surgiram imensas garras, que brilhavam como o marfim polido sob o brilho da lua. Ele avançou, e Vincenzo desesperou-se. Correu para os portões da cidade com toda sua velocidade, sem nem mesmo sentir fadiga. Sem olhar para trás.
Ao chegar, viu dois sentinelas. Apontou para trás, e há pequena distância, vinha o demônio. Os sentinelas apenas riram, e depois fizeram alguma piada. Eles falavam o mesmo idioma desconhecido. Vincenzo passou entre eles, e correu pelas ruas da cidade, apavorado. Precisava chegar na igreja, onde o demônio não conseguiria entrar. Ao passar por uma rua estreita, viu um velho sentado no batente de uma porta. Estava vestido com um lençol branco, que cobria uma enorme corcunda, e tremia com o frio. Esticou a mão, e pediu uma esmola. Vincenzo olhou para trás, e viu seu perseguidor monstruoso subindo a rua. Havia prometido ser caridoso. Parou por um momento, e sentiu que, se não ajudasse o homem, perderia sua alma de qualquer forma.
- Venha. Ele vai matar a todos! Me siga!
Mas o velho ficou parado, com a mão estendida, pedindo esmola.
- Não tenho medo dele. Ninguém se importa com um mendigo. Tenho fome. Uma moeda, por favor.
Vincenzo, sem saber por que, vasculhou desajeitadamente seu bolso, até encontrar a moeda. O demônio já estava há menos de trinta metros, e caminhava em um ritmo inumano.
Ao entregar a moeda, ele gritou para o mendigo fugir, e virou-se para seguir seu caminho até a igreja, mas sentiu o velho apertando seu pulso. Sua mão era quente, e sua força era incomparável. A porta atrás dele abriu-se, e ele puxou Vincenzo. Entraram em uma sala. Pelas janelas, Vincenzo percebia ser uma torre, iluminada pelos raios de sol do leste. Nas paredes, haviam figuras geométricas e desenhos rupestres.
- Quem é você, homem? Percebe que estou sendo perseguido?
- É somente por isso que está aqui, meu jovem - e tirou o lençol, revelando imensas asas brancas.
- Um anjo! - foi tudo que Vincenzo conseguiu dizer.
O ser esticou a mão para ele, pedindo sua espada. Ao ser prontamente obedecido, falou:
- Você provavelmente me conhece pelo nome, Vicente - e instantaneamente fez a lâmina brilhar em chamas.
Vincenzo caiu de joelhos, e novamente os prantos vieram à sua face.
- São Miguel! Não posso acreditar… o arcanjo...
- Ah, mas você acredita, sim. Caso contrário, eu não estaria aqui.
- E onde nós estamos?
- Pegue minha espada, abra os olhos, e as respostas virão.
O monge fez isso, e então retornou à rua de Florença. O demônio estava exatamente na mesma distância de antes, e o arcanjo havia sumido. Ele empunhou a espada em chamas, e partiu para cima da criatura. O primeiro golpe decepou a mão direita. Vincenzo preparou o segundo, mas já não era necessário. A criatura agonizava com gritos ininteligíveis, e girava enquanto a massa fantasmagórica que era sua cabeça se desfazia. Enfim, caiu, e só o que restava era um cadáver decapitado na lama.
- Isso realmente aconteceu - repetia o monge, enquanto dirigia-se à igreja.
Porém, quando finalmente chegou, percebeu que sua missão não era ali. Seguiu, e foi até a prisão. Chegando lá, encontrou Deza a sós com Maria. Ela estava nua, pendurada no teto pelos tornozelos, com sangue escorrendo das suas pernas e costas. Seus cabelos haviam sido raspados, e ela chorava.
- Ah, Vincenzo, o sumido! Aí está ele novamente!
- Não brinque comigo, inquisidor. Não estamos na espanha. O que você está fazendo é errado. E se a mulher for inocente?
- Então, após muitas torturas, ela não confessará, seu insolente.
- Isso é loucura. É apenas crueldade pura. Jesus nunca pregou tortura, e o papa excomungou esse livro e seus autores!
- Você se engana, Vincenzo. Olhe bem o que o livro diz, logo no prefácio. Ele foi aceito oficialmente pela Vossa Santidade, o Papa. Vou ler para você: “Bula Summis desiderantes affectibus. Papa Inocêncio VIII, 1484...decretamos e estabelecemos que os mencionados Inquisidores têm o poder de proceder, para a justa correção, aprisionamento e punição de quaisquer pessoas, sem qualquer impedimento, de todas as formas cabíveis".
Ao ouvir a citação, Vincenzo sentiu novamente a batalha interna que havia travado no Dumo. As palavras do inquisidor ressonavam em sua cabeça com insistência, como se quisessem repetir até tornarem-se verdade.
Após superar a vertigem que sentiu, Vincenzo olhou para o livro com mais atenção, e pode perceber, pela primeira vez, uma aura negra ao redor. Uma emanação de pura maldade, assim como as palavras do demônio que acabara de derrotar. Lembrou então das palavras de Maquiavel:
“Uma das formas de magia é a criação de talismãs.”
Sacou sua espada, e a pôs em chamas. Maria chorava, pedindo para ele parar. Deza estava apavorado, fazendo o sinal da cruz. Ele então desferiu um golpe poderoso, e destruiu o livro. Páginas em chamas voavam pela prisão, produzindo uma nuvem de cinzas.
- Seu precioso livro, inquisidor, não era obra de Deus, mas sim do próprio diabo. E seja quem a tenha escrito, eu duvido que tenha tido uma mãe. Talvez tenha nascido de uma rocha.
O bispo ajoelhou-se, chorando com uma criança. Estava desabando, mas Vincenzo não poderia se preocupar com ele. Soltou Maria, entregou suas roupas, e a deitou. Colocou as mãos sobre ela, e utilizou toda sua vontade para curá-la, como fizera da última vez.
- A espada. Era de São Miguel, Vicente. Você despertou.
- Você sabe o que está acontecendo comigo, Maria? Por que eu tenho todo esse poder?
- Todos nós temos, mas apenas alguns despertam. Nós chamamos essas pessoas de Alumbrados.
- Illuminati é como são chamados aqui - ele respondeu. Dizem que é uma seita maligna, de adoradores do demônio, que só pensam em poder em governar secretamente a humanidade.
- Sempre será dito isso daqueles que conseguem entender forças que, para os demais, são invisíveis.
Ele olhou para as pernas de Maria, e as feridas haviam fechado. Pegou o manto que Deza havia pendurado no cabide, e deixou o inquisidor em suas próprias lamentações. Pode apenas ouvir ele dizendo:
- Senhor, perdoa-me. O que eu fiz?
Montou seu cavalo, e saiu novamente de Florença, rumo a Prato. Sentia o calor de Maria contra seu peito. Era como se voltasse à um momento em sua vida em que tudo era perfeito, apesar de não conseguir lembrar alguma vez em que isso havia acontecido.
- Você sabe, Maria. Todos esses anos, o homem que você deve ter ouvido que me tornei… todo esse tempo, eu nunca deixei de amar você, nem por um instante.
- Pois saiba você que eu sinto o mesmo, Vicente. Talvez não da forma como você me ama, eu percebo. Não sei como explicar a você, mas o divino me completa tanto, que para mim basta. Posso dar a você todo o amor do mundo, mas esse é meu caminho.
- Seu jeito é bom o suficiente para mim. Vamos embora, viver longe dessa corrupção.
- Temo que você não possa fazer isso, meu amor. Você já me salvou, mas agora tem que terminar sua missão. Deixe-me em Prato, você ainda tem um assassino para capturar.
- Não sei se é o certo.
- Há momento em que não precisamos pensar no certo ou errado. Cada um tem sua missão. Você é um guerreiro. Não pense. Afaste todos os pensamentos, e simplesmente lute.